CONTOS

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O surreal encontro do ladrão com a Morte

          Em qualquer lugar do mundo a morte é considerada “persona no grata”, além de temida e odiada por todos pelos sentimentos de dor e inconformismo trazidos a tona por sua indesejável presença. Eu disse: EM QUALQUER LUGAR DO MUNDO; mas não em Bezerros, cidade do agreste pernambucano onde certo cidadão resolveu adotar a alcunha e tornou-se uma das figuras mais populares e queridas do município.
          Conhecido pela aguda miopia, pelo incondicional amor ao Corinthians e pelo relacionamento afetuoso que mantém com a aguardente, essa irreverente figura é ainda um dos mais apaixonados foliões carnavalescos que conheci, a ponto de não conter as lágrimas todas as vezes que ouve, ao som dos clarins, “quarta-feira ingrata”, de Luiz Bandeira.
          Tradicionalmente vestido de mulher, fantasia que põe, religiosamente, desde as prévias carnavalescas até o silenciar do último tambor, o brincante sai às ruas com a boca exageradamente lambuzada de batom, “beijando” todos os amigos que encontra pelo caminho, o que fez dele, depois do papangu, um patrimônio cultural imaterial daquela comunidade.
          Em um desses carnavais – já faz algum tempo – ao preparar-se para sair de casa, ainda zonzo pelos excessos na noite anterior, “a Morte” deu por falta de todo o seu dinheiro, poupado durante o ano inteiro justo para essa ocasião e confiscado pela sua genitora no intuito de preservá-lo dos imprevisíveis riscos a que estão sujeitos os que se entregam sem ressalvas à folia de momo.     Inconformado com a situação, mas sem nem pensar em abrir mão da festividade, resolveu ele dirigir-se assim mesmo ao QG do frevo, principal pólo de concentração popular, na esperança de encontrar-se com os amigos, que certamente não lhe negariam alguns goles de cachaça.
          No caminho, porém, ao cruzar um beco, “a Morte” foi surpreendido por uma enérgica voz de comando:
- “Perdeu payboy... passa a grana!”
          A qual, prontamente respondeu com o comentário:
- Pronto... “bilisquei”... fui achar logo um mais liso do que eu.
          Nesse momento, outro assaltante, que encontrava-se urinando num beco transversal, ao virar-se e reconhecer o ilustre folião redarguiu:
- Libera ele maluco... é “a Morte”!
          Então, num sobressalto surpreendente, “a Morte” exclamou:
- Ah... e você me conhece é? Então desenrole logo dois real pra eu comprar uma latinha.
- Ôxe Morte, tenho não. Vai descendo, vai. – respondeu seu conhecido.
- O quê? Vô nada, só saiu daqui com dois real. E pode trabalhar aí à vontade que eu tô sem pressa, já já passa outro cliente. – Dessa feita, foi logo sentando-se numa calçada sossegadamente como se estivesse no sofá de sua própria casa.
          Logo percebendo que não teria jeito de “escapar da Morte”, o gatuno amigo foi obrigado a pedir os dois reais emprestado ao seu compassa e entregá-los prontamente ao tranqüilo folião trajado de mulher, passando assim de assaltante a assaltado e, ainda por cima, sendo carimbado na bochecha pela rubra boca do brincante.
          Moral da história: CONHECER A MORTE É PREJUIZO NA CERTA!

Recife / novembro / 2010
(Publicado no Jornal "Boca de Lobo", nº 4, ano I - UFRPE)
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Fragmentos de " O encontro dos anjos "  *
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SHIRLEY PARK

           Passando pela sala com aqueles garrafões nas mãos, Shirley demonstrava-se decidida a por em prática seu plano. Já não conseguia pensar em mais nada, nem mesmo em algum tipo de dor. Nada seria tão doloroso quanto seu estado de espírito naquele momento: dívidas, desemprego, pressões... eram palavras que, dia-a-dia, se tornavam cada vez mais presentes em sua vida.
          Vida? Essa também era uma palavra presente, porém, indecifrável. Algo que não fazia o menor sentido. Para ela, embora aparentasse que vida deveria ser sinônimo de nascimento, vigor, alvorecer, pulsar, sentir... a sua sempre se pareceu mais com um desastre.
          Aos doze anos de idade, Shirley Park descobriu que ter problemas na vida não é nenhum privilégio e quem lhe ensinou isso foi seu pai, Wilson Park, um velho bêbado aposentado que perdera a mão esquerda em um acidente de trabalho e, desde então, dedicou sua vida a molestar as três filhas menores: Jéssika, de 15 anos; Katarine, de 14; e a caçula – seu xodó – Shirley. Todas as noites, embriagado, Wilson satisfazia suas taras sexuais com uma delas – às vezes com duas – e mesmo quando não era Shirley o objeto do prazer bizarro daquele canalha, os sussurros de dor e de humilhação de suas irmãs e os gemidos de prazer dele, a faziam entrar em desespero.
          Aos dez anos havia perdido sua mãe em circunstâncias tão duvidosas quanto seu próprio destino. Vilma Park teve seu pescoço cortado enquanto assistia televisão no sofá de sua sala, onde, após ser degolada, ainda foi atingida por vários golpes de faca. A porta havia sido arrombada, mas a perícia não encontrou marcas no corpo da vítima que evidenciassem qualquer tentativa de reação. O mais provável, segundo os peritos, é que ela nem tenha percebido o ataque. Também não encontraram nenhuma digital ou pista e nada foi roubado. A polícia, evidentemente, não conseguiu explicar o caso, que, por falta de provas que indicassem um culpado, foi arquivado.
          Agora, enquanto despejava em uma grande bacia o conteúdo dos garrafões, mais uma vez Shirley revivia momentos de sua vida que, mesmo parecendo distantes, tinham o enorme poder de corroê-la, pois estavam para sempre gravados no mais profundo de sua alma.
          Ao tirar toda a roupa, contemplou-se diante de um espelho. Não conseguia ser sensual. Havia engordado e a ação da gravidade já se fazia tão aparente quanto inevitável. E daí? – pensou – em pouco tempo não se importaria mais com isso. Em pouquíssimo tempo nada mais poderia incomodá-la, nada mais lhe corroeria. Nada mais... nunca mais.
          Já em pé, dentro da bacia, banhava-se, desde a cabeça, com o esperado remédio para suas aflições: uma solução preparada com quatro partes de gasolina, três partes de álcool e três partes de solvente para tintas à base de óleo. Tomava seu banho num estranho ritual, cantarolando uma velha cantiga de ninar que sua mãe havia lhe ensinado quando ainda era muito pequena. Era curioso que se lembrasse dela logo agora.
          Com uma calma extremamente sombria, abaixou-se devagar, apanhou um isqueiro e concluiu, enfim, a última etapa do macabro ritual: ateou fogo ao próprio corpo!
          A primeira faísca desencadeou uma chama gigantesca que antecedeu uma enorme explosão ouvida a centenas de metros dali. A pobre mulher ainda resistiu em meio às chamas por alguns instantes, enquanto seu corpo era violentamente consumido camada após camada. O que restou completamente carbonizado foi encontrado vinte minutos depois, por vizinhos que conseguiram arrombar a porta.
          Na parede ao lado, em tinta preta e em letras garrafais, a última mensagem de Shirley:
“A vida é uma mentira... LIBERTE-SE !”        
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*   "O encontro dos anjos" é o que considero meu primeiro diálogo aberto como o papel. De tão aberto, às vezes brigamos, nos desentendemos e eu o abandono; depois, quando me arrependo e o procuro para desculpar-me, ele - feito criança mimada - faz doce e desaparece até que nos reencontremos novamente pelas mais improváveis circunstâncias. Nosso primeiro encontro se deu em abril de 2003 e, desde então, tenho procurado reunir seus fragmentos. A história de Shirley Park é o texto de abertura. 

Bezerros / junho / 2003
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